
Luciana Rafagnin segura foto de Leopoldo. Ao fundo, o edifício que leva o nome do avô, na Travessa Frei Deodato, em Francisco Beltrão.
Por Juliam Nazaré – Há 60 anos, os militares tomaram o poder, destituíram o então presidente João Goulart e assumiram o comando do Brasil. Em 31 de março de 1964 teve início um período ditatorial, sem eleições diretas, que durou até 1985. O fim da liberdade de expressão e a perseguição a opositores políticos do regime deixaram cicatrizes na região Sudoeste do Paraná. O exemplo mais conhecido é do médico e então deputado estadual Walter Pécoits, cassado, preso e torturado durante o período. Apesar de tudo isso, “Doutor Walter”, como era conhecido, sobreviveu e faleceu bem depois do fim da ditadura, em 2004, aos 86 anos. Mesmo destino não teve outro antepassado de família hoje tradicional em Francisco Beltrão: Chiapetti.
Leopoldo Chiapetti nasceu em Garibaldi (RS), e em 1964, aos 57 anos, vivia em Mariano Moro, no Noroeste do Rio Grande do Sul. Era agricultor e subprefeito do lugarejo. Em 30 de abril, com menos de um mês com os militares no poder, foi preso, acusado de ser o líder do Grupo dos Onze, ligado ao ex-governador do Estado e opositor ao regime Leonel Brizola.
Leda Chiapetti, filha de Leopoldo, tinha oito anos na época e se lembra do dia que o pai foi para a cadeia. “Até hoje me emociono ao falar disso, porque foi um trauma. Ele estava numa fazenda em Santa Catarina e quando chegou na cidade viu o Exército. Pediu pra mãe o que estava acontecendo e os vizinhos pediram que se escondesse, mas ele não quis. Ele queria saber o que tava acontecendo com os amigos dele. Foi preso na nossa frente.”
Foram 21 dias preso, intervalo de tempo que passou sob sessões de tortura: choques nos testículos, afogamentos, entre outras crueldades. As consequências das atrocidades que sofrera nas mãos dos militares foram cruciais para a morte, em 21 de maio de 1965. “Ele contraiu uma infecção na bexiga na cadeia, ainda, e isso se alastrou. Uma vez quando fui visitar ele no hospital, tinha um policial em cada lado da porta do quarto, como se ele fosse um bandido. O pai era uma pessoa tão boa, que as pessoas chamavam ele quando ficava doente, se ficavam sem leite iam lá em casa e levavam as vacas. É triste lembrar que um pai tão bom foi preso sem nunca ter feito nada, só o bem”, lamenta Leda.
Além dela, Leopoldo teve mais nove filhos: Arcindo, Ênio, Deijanira, Jandiro, Lourdes, Odi, Odila, Orides e Romualdo. A viúva, Tereza, viveu até 2008: chegou aos 97 anos. Todos na família passaram as décadas em silêncio, porque tinham medo de uma nova perseguição.
A deputada estadual Luciana Rafagnin é neta de Leopoldo, filha de Deijanira. Nasceu em 10 de setembro de 1965, meses após a morte do avô. Ela conta que só soube do que de fato ocorrera com ele após 1985, quando era adulta e o Brasil havia voltado a ser uma democracia. “Meus pais não falavam. Eles contavam que o ‘vô’ foi preso mas tinham medo, por conta da própria ditadura e receio de falar pra nós, porque passava a impressão que ele havia feito algo ruim. Nossa família se calou. Quando fui sair candidata a vereadora, em 1992, minha mãe disse: ‘não vá, não vá’. Por conta do medo, do trauma do que ocorreu. Ela sempre teve medo de falar sobre a prisão do meu avô, mesmo depois que fui eleita. Quando se fala em ditadura parece algo distante, mas quando ocorre na família tu sente o quanto foi próxima e real. Só vejo lado ruim na ditadura, não tem o que ver de bom.”
A vinda dos Chiapetti para o Paraná ocorreu em 1968. “Foi uma tentativa de encontrar uma vida melhor. Vieram pra Nova Secção. Eles foram se desfazendo de tudo o que tinham pra tentar salvar a vida do meu avô. Não o conheci e penso que poderia ter convivido com ele por muito tempo, não fosse a ditadura”, relata Luciana.
Passados os anos, Leopoldo Chiapetti foi reconhecido como uma das vítimas do governo militar. Ele deu nome a uma rua de Erechim (RS), onde morreu, e a um edifício em Francisco Beltrão — fica entre a travessa Frei Deodato e a rua Antônio de Paiva Cantelmo, onde estão alguns órgãos, como o Procon.
Além disso, foi criada em 2011 pelo Governo Federal a “Comissão da Verdade”, que investigou, documentou e indenizou famílias que foram vítimas da violação dos direitos humanos no período. “A proposta era revisar e investigar como esses crimes aconteceram. Nunca houve um movimento pra se discutir as violências, arbitrariedades e excesso de poder. Foi um movimento importante, mas fraco comparado a tudo o que houve. Trouxe alguns relatórios e nomes, mas não houve continuidade às investigações, nem punições àqueles que mereciam. Na verdade, produziu um relatório confirmando relatos que já existiam”, avalia o professor de história Gilberto Antes.
Walter Pecóits
Filho de Walter Pecóits, Roberto Pecóits relembrou o período em que o pai foi preso e perdeu a visão de um olho por conta das torturas. “Meu pai foi aprisionado em Cascavel em agosto de 1964, quando retornava de Curitiba para Francisco Beltrão e o voo fazia escala em Cascavel antes de seguir para o destino final. Como demoraria na escala em Cascavel, meu pai foi até a cidade e enquanto tomava um café foi feito prisioneiro pelo então delegado daquela cidade, pessoa muito conhecida, que se chamava Coronel Lapa. Quando recebemos a noticia de prisão fomos nós, os familiares, falar com o Secretário de Segurança do Estado e solicitar que zelasse pela vida dele pois a fama do delegado era a pior possível. O secretario nos garintiu que ficaria atento, mas na verdade quem ficou atento foi um ex-morador de Francisco Beltrão que foi para a delegacia e ficou ao lado do meu pai durante o tempo que ele esteve preso. Assim mesmo meu pai foi espancado e torturado e perdeu a visão de um olho”, conta.
Contexto
Após a saída de Juscelino Kubitschek do poder, em 1960, o Brasil enfrentava uma crise financeira. O presidente Jânio Quadros renunciou após sete meses de mandato (em 1961). João Goulart, nome ligado aos movimentos de esquerda e rechaçado pela ala conservadora, assumiu. Até então, presidente e vice eram eleitos separadamente, o que justifica o contraste. Para frear as iniciativas de “Jango”, o Congresso mudou o sistema de governo do país: de presidencialismo para parlamentarismo. João Goulart passa a ser chefe de estado e perde poder. Em 1963, no entanto, a população, através de um plebiscito, escolhe o presidencialismo e ele volta a ser presidente.
“O conceito mais utilizado hoje é regime cívico-militar, porque os militares não estavam sozinhos. O golpe em 64 ocorreu em aliança com alguns setores, como classe média e algumas classes conservadoras, porque a grande motivação foram as propostas de base de João Goulart. Ele propôs várias reformas que mexeriam na estrutura política, social e econômica do país, mas duas delas assustaram a classe conservadora: a reforma política e a agrária”, explica Gilberto Antes.
Jango foi deposto e o Brasil passou 21 anos sob o comando de militares, foram cinco, sempre escolhidos sem a participação do povo: Castello Branco (1964-67), Costa e Silva (1967-69), Emílio Médici (1969-74), Ernesto Geisel (1974-79) e João Baptista Figueiredo (1979-85). Ao longo do regime, a arbitrariedade cresceu. Os anos de chumbo — 1968 a 1974 — foram marcados pelo fechamento do Congresso Nacional, a censura geral, empastelamento de meios de comunicação, perseguição e torturas. Foram documentadas 438 mortes e mais de 20 mil pessoas foram torturadas.
Fonte: Jornal de Beltrão