Texto de Marcos Augusto Maliska, recebido por e-mail. O referendo que irá se realizar nesse mês não é obra do acaso. Não fosse a profunda insegurança da sociedade brasileira, atrelada à escalada da violência sem
Texto de Marcos Augusto Maliska, recebido por e-mail. O referendo que irá se realizar nesse mês não é obra do acaso. Não fosse a profunda insegurança da sociedade brasileira, atrelada à escalada da violência sem precedentes na história do país, a população não precisaria ser convocada para referendar a decisão tomada pelo parlamento nacional.
No momento em que o Instituto Ibope de pesquisa apresenta empate técnico com leve vantagem para o “não”, me senti na obrigação de escrever esse texto e defender o “sim”. Eu respeito aqueles que pensam de maneira diferente, mas gostaria de externar os motivos que me fazem votar a favor da proibição da venda de arma de fogo e munição.
1) O problema da violência e da insegurança social é amplo e complexo e não se esgota na proibição aqui discutida. No entanto, o referendo tem um valor simbólico, um sinal de paz. Nós, o lado sensato da história, que não promovemos a violência e a repudiamos, ao invés de responder com violência a violência, temos que responder com a não violência.
2) Dizer que uma arma em casa promove a segurança, intimida o bandido e o afasta é uma falácia. Hoje os bandidos estão assaltando delegacias de polícia e se existe um lugar onde há arma de fogo e gente que sabe atirar é delegacia de polícia. Portanto, você deve estar consciente de que, ao tentar impedir a ação de um bandido em sua casa, com uma arma de fogo, a sua chance de morrer aumenta cento e oitenta vezes e que, ao atirar, você nunca deve fazer para assuntar o bandido e sim para mata-lo, pois é a sua vida contra a dele. No momento que você age assim você não se diferencia do bandido em termos axiológicos, ambos possuem os mesmos valores, pois submetem a vida aos bens materiais que tentam, um proteger e o outro, obter. O bandido, ainda que coloque em risco a sua vida e a de outros, na imensa maioria das vezes, está interessado apenas nos be ns materiais e não quer ferir ou matar ninguém. A sua reação é que pode provocar uma tragédia.
3) O “não” ao referendo significa um “sim” para a defesa, a qualquer custo, do patrimônio. É ilógico o argumento daqueles que defendem o “não” e dizem que o problema da violência é social. Assumir o problema da violência como social significa incorporar valores de solidariedade que são incompatíveis com o direito de ter uma arma e atirar em quem se aproxima dos bens alheios para os furtar. Quando a pessoa se acha com esse direito, ela não está se dando chance alguma para, ao menos, compreender o problema social.
4) Há um argumento utilitarista para se evitar a equalização axiológica com o bandido. Mesmo que você mate o pior bandido do país, você sempre será, em tese, um criminoso, que estará sujeito ao julgamento perante a lei. Você poderá sentar-se no banco dos réus e até mesmo ser condenado, se o júri entender que a sua ação foi desproporcional a ameaça sofrida. Vale a pena? Você irá destruir a sua vida e da sua família por uma ação impensada, que, com certeza, fará você se arrepender do que fez. O bandido não tem nada a perder, você tem.
5) A campanha do “não” está sendo habilmente dirigida pelos interesses econômicos que cercam a venda de arma de fogo e munição. É facilmente imaginável qual será a repercussão econômica para o setor se a resposta ao referendo for sim. De outro lado, alguém tem interesse econômico individual imediato respondendo “sim”? Ninguém.
6) Proibir o comércio é uma medida extrema, que poderia ser ponderada em termos de um maior controle, se outra fosse a realidade do Brasil. No entanto, a radicalidade da medida é uma tentativa de recuperação da civilidade. O Estado Moderno, que tem como uma de suas principais funções promover a segurança pública mediante a reivindicação do monopólio da violência legítima, hoje concorre com grupos armados na manutenção da (in)segurança de determinados espaços do território nacional. Arma de fogo deve ser utilizada somente pelo aparato estatal que promove a segurança, mediante estrita observância da Constituição e das leis. Isso pode até soar ridículo no mundo em que vivemos, mas se não acreditarmos niss o teremos que fazer, imediatamente, uma leitura de trás para frente dos clássicos, como Locke, Hobbes e Kant, e assumir como catastrófica a sociedade que deixaremos para os nossos filhos e netos.
7) É irracional o argumento, bastante utilizado, de que eu tenho o direito à arma de fogo para me defender dos bandidos, que não serão desarmados. Primeiro, ele pressupõe que a comercialização de arma de fogo é exclusiva para as “pessoas de paz” (esse conceito é melhor do que o “de pessoas de bem”, pois esse só serve para reforçar estereótipos), o que é um equívoco. O governo precisa ser cobrado no tocante a uma maior fiscalização das fronteiras para impedir o comércio ilegal. Além disso, as armas importadas pelo crime organizado são de uso exclusivo das forças armadas e, a rigor, caso você queira mesmo ter armamento equivalente aos dos bandidos para se defender, você terá que partir também para o comércio ilegal, pois a Lei não autoriza o registro de arma de uso exclusivo das forças armadas. Com uma arma de calibre 38 você não terá nenhuma cha nce de se defender de um bandido portando uma arma automática.
8) Por fim, a alegação de que a proibição fere o direito individual de liberdade, no momento que não possibilita a defesa pessoal, na minha opinião, não encontra fundamento constitucional. Se se admitir o porte de arma como imprescindível ao direito de legítima defesa, há uma inconstitucionalidade na própria lei 10.826, no momento que ela permite ao particular apenas o registro para manutenção de arma de fogo “exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou dependências desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa” (art. 5?) e proíbe o porte, admitindo apenas as exceções que constam do art. 6.?. Assim, independente do referendo, a pessoa não tem o direito de portar uma arma de fogo para repelir um assalto na rua, por exemplo. Portanto, não é por esse caminho que devemos interpretar o direito à legítima defesa, ou seja, o direito à legítima defesa não tem um conteúdo pré-determinado (teoria dos limites imanentes), mas depende do caso concreto e de um juízo de proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Como a medida da proibição do comércio tem por finalidade preservar a vida, e os índices estatísticos mostram que o desarmamento voluntário da população diminuiu o número de mortes por arma de fogo, depois de quinze anos de sucessivo aumento, a medida legal está em perfeita sintonia com a Constituição.
Marcos Augusto Maliska Doutor em Direito Constitucional Professor da UniBrasil, em Curitiba, e do Cesul, em Francisco Beltrão. Procurador Federal