Está crescendo em Francisco Beltrão o número de crianças e adolescentes viciados em crack. A droga é uma das mais devastadoras da atualidade e seu consumo desenfreado causa um efeito cascata, trazendo sérios prejuízos para toda a sociedade
Do jornal Hora Popular – 31/07/2009
Por Niomar Pereira
Está crescendo em Francisco Beltrão o número de crianças e adolescentes viciados em crack. A droga é uma das mais devastadoras da atualidade e seu consumo desenfreado causa um efeito cascata, trazendo sérios prejuízos para toda a sociedade. Além de graves danos aos usuários, o crack é responsável por crimes contra o patrimônio, aumento dos gastos com saúde pública e desestruturação familiar. Em muitos relatos, pais chegam a cometer atos extremos como manter os filhos presos dentro de casa ou expulsá-los do lar.
O Conselho Tutelar do município registrou desde o início do ano 30 casos de menores de idade envolvidos com crack. Mas calcula-se que o número seja pelo menos duas vezes maior na cidade, já que nem todos procuram ajuda. Chegaram até o órgão as mais diversas situações, desde crianças de 08 anos de idade viciadas, até aquelas em que os pais amarraram os filhos em casa para não procurar a droga. A maior incidência, no entanto, é de menores com idade entre 14 e 15 anos.
A conselheira Cláudia Gobi da Silva salienta que os bairros de maior vulnerabilidade social apresentam os maiores índices de “drogaditos”. Na opinião dela, não há possibilidade de realizar um trabalho de recuperação efetivo destes garotos sem a implantação de políticas sociais preventivas.
“O internamento deveria ser a última medida, antes disso precisamos de um amplo trabalho de reinclusão. Há necessidade urgente de implantação no município de um CAPS/AD, voltado ao tratamento de alcoólatras e drogados”. Segundo ela, algumas garotas dominadas pelo vício se prostituem para conseguir a droga e os meninos acabam praticando pequenos furtos.
O conselheiro Evandro Wessler informa que o primeiro passo é o diálogo do Conselho Tutelar com a família, depois de constatada a necessidade de internação é encaminhado ao Juizado da Infância e da Juventude o pedido para internar. A partir disso inicia uma nova maratona para obter vagas nas casas e clínicas de recuperação do estado. Se o menor tiver menos de 12 anos a situação é ainda pior, porque a criança não pode ficar sozinha longe de casa, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Clínica recebe jovens viciados em estado “deplorável”
Do ano passado para cá foram encaminhados 15 menores com faixa etária de 12 a 18 anos à Clínica Médica HJ, de União da Vitória, que é especializada em saúde mental. O diretor da casa, Fernando Ferencz, diz que os jovens beltronenses chegam ao estabelecimento em estado deplorável, normalmente desnutridos e machucados por perambularem pelas ruas. De acordo com ele, 100% dos casos atendidos são de viciados em crack. No local, os jovens passam por tratamento psicológico e somente recebem tratamento medicamentoso se apresentarem problemas clínicos.
A clínica conta com uma equipe de profissionais formada por dois psiquiatras, médicos clínicos de plantão, educador físico, terapeuta ocupacional, dois psicólogos, assistente social, nutricionistas e farmacêutico. Ferencz diz que os menores são ocupados desde o primeiro minuto que chegam ao local com terapias e palestras para evitar crises de abstinência. “O internamento pode durar até 60 dias. O menor sai daqui desintoxicado, mas é claro que o tratamento deve continuar em outro lugar para evitar que ele tenha uma recaída”, ressalta.
A clínica tem uma parceria com o Governo do Estado e oferece 20 leitos para menores viciados de todas as regiões do Paraná, por isso as vagas são tão concorridas. Os adolescentes somente são aceitos com ordem judicial, mesmo que o internamento seja involuntário.
Crack: entenda porque é uma droga letal
“O usuário de crack normalmente apresenta delírios persecutórios e pode vir apresentar quadro alucinatório semelhantes à esquizofrenia”
O crack é atualmente uma das substâncias mais prejudiciais para o organismo do ser humano. O médico psiquiatra, Cícero Bezerra de Lima, explica que a droga leva 10 segundos para fazer o efeito, gerando euforia e excitação, respiração e batimentos cardíacos acelerados, seguido de depressão, delírio e “fissura” por novas “pipadas”.
As primeiras sensações são de euforia, brilho e bem-estar, descritas como o estalo, um relâmpago, o “tuim”, na linguagem dos usuários. Na segunda vez, elas já não aparecem. Logo os neurônios são lesados e o coração entra em descompasso (de 180 a 240 batimentos por minuto). O psiquiatra fala que há risco de hemorragia cerebral, fissura, alucinações, delírios, convulsão, infarto agudo e morte.
Outros sinais importantes são euforia, desinibição, agitação psicomotora, taquicardia, dilatação das pupilas, aumento de pressão arterial e transpiração intensa. São comuns queimaduras nos lábios, na língua e no rosto pela proximidade da chama do isqueiro no cachimbo, no qual a pedra é fumada.
Dr. Cícero salienta que a droga é tão viciante por ter um efeito de curtíssima duração, provocando um uso repetido numa mesma ocasião. Esse comportamento compulsivo leva o usuário à dependência muito mais rápido que as outras formas de uso de cocaína, e, consequentemente, a um custo monetário, de saúde e social muito maiores. “A essa compulsão para utilizar a droga repetidamente dá-se o nome popular de “fissura”. Após o uso intenso e repetitivo, o usuário experimenta sensações muito desagradáveis, como cansaço e intensa depressão”, relata.
Tratamento
O médico psiquiatra informa que o tratamento do crack é complexo. O paciente tem que ser submetido a uma reabilitação psicossocial e isso leva meses. Tem que haver uma estrutura montada para acolher o paciente e paralelamente um trabalho com os seus familiares, que também precisam de tratamento e apoio. “A medicação é utilizada conforme a necessidade do momento, não é para “curar o vício” como as pessoas acreditam”, reforça.
CAPS AD
O uso de crack e outras drogas não é só intenso em Beltrão, mas em toda a região do Sudoeste do Paraná. Além do CAPS AD, Dr. Cícero diz a região necessita de clínicas para internação do dependente químico. “O CAPS AD não se mostrou eficiente no tratamento do dependente de crack. Segundo o Dr. Ronaldo Laranjeiras, coordenador da UNIAD, para cada 1.000 usuários tratados somente 19 conseguem realmente ficar longe do crack. Não consigo vislumbrar um tratamento para dependente de crack que não seja em um local recluso e com uma estrutura para que o mesmo seja reinserido no meio social”, pontua.
Polícia tirou das ruas mais de 40 traficantes de “pedra”
O crack surgiu na década de 1980 como um subproduto da cocaína. Os traficantes precisavam de uma droga barata para atingir as classes mais pobres e criaram o crack a partir da mistura das sobras da cocaína com bicarbonato de sódio. O poder viciante da droga atingiu todas as classes sociais.
O comandante da Polícia Militar de Francisco Beltrão, capitão Elisvaldo Balbino, afirma que nos últimos dias dois indivíduos foram detidos depois de permanecer duas semanas no mato fumando pedras de crack. O que mais chama atenção, conforme disse, é que são jovens de classe média, na faixa dos 20 anos, e com trabalho fixo.
De acordo com ele, a polícia está concentrando esforço para reduzir a ação dos traficantes na cidade. E os resultados são positivos. Neste ano, já são computadas 23 ocorrências com a prisão de mais de 40 traficantes. Um número 64% superior ao registrado no mesmo período do ano passado. A prisão por porte ou uso de crack também aumentaram 177%, com um total de 25 ocorrências. “Não há em nossa cidade a prisão de grandes quantidades de crack. Normalmente os traficantes fazem o tráfico em pequenas quantidades que são escondidas em frascos, bolsas, carteiras, entre outros”, revela capitão Balbino.
Mas quando se analisa os números regionais percebe-se claramente que o crack está se tornando uma epidemia no Sudoeste. Nos cinco primeiros meses de 2009, a Polícia Militar apreendeu mais de 3,5 mil pedras de crack no Sudoeste. Nesta semana as autoridades policiais prenderam em Pato Branco o traficante conhecido como “Quirera” e fez junto com ele a apreensão de 250 gramas da droga, comprovando que a demanda pela substância não para de crescer na região.
Crimes contra o patrimônio
Capitão Balbino explica que o crack também está diretamente ligado aos crimes contra o patrimônio como furtos e roubos. Ele destaca que os viciados começam a roubar bens dos próprios pais, quando a família percebe, então começam a ser praticados os pequenos furtos a terceiros. Tudo que tiver valor para os traficantes pode ser moeda de troca pela pedra. “Alguns traficantes têm roupas velhas na ‘boca, o usuário chega com roupas boas e as troca por droga saindo vestido com trapos”, frisa.
O comandante da PM endende que a redução do número de traficantes na cidade dificulta a vida dos usuários para encontrar “as pedras” e consequentemente reduzem os roubos e furtos a residências e estabelecimentos.
Nos cinco primeiros meses de 2009 a polícia identificou 39 roubos (quando é empregada violência a pessoa ou objeto) contra 44 computados até maio de 2008, portanto, uma redução de 11%. A maior queda foi percebida nos furtos qualificados (aquele em que o indivíduo rompe barreiras: portas, janelas, telhados), de 413 para 177 (57%) se comparados com o ano anterior. E os furtos simples (o objeto é retirado na presença da pessoa sem ameaça ou violência) caíram de 331 para 295 nos cinco primeiros meses (10,8%).
Crianças a serviço do tráfico
Capitão Balbino diz que muitas crianças são usadas pelos traficantes porque não existe responsabilidade criminal para os menores de idade. “Menores são usados para efetuar entrega de drogas ou avisar os traficantes quando a polícia chega ao local. Mas é bom ressaltar que o serviço de inteligência (P2) já tem o monitoramento de muitos casos”. O comandante salienta que é possível notar se o município está tomado pelo crack se existem muitos menores perambulando pelas ruas. “Não percebemos ainda este tipo de circunstância em Francisco Beltrão, embora existam casos preocupantes”, reflete.
Usuários buscam recuperação e lamentam dinheiro gasto com crack
Francisco*, 23, entrou no mundo das drogas com 15 anos. Provou inicialmente maconha e logo se envolveu com crack. Ele considera a droga como uma das piores experiências da vida. Na fase mais perversa da “estiga” ele diz que ficou cinco dias sem comer e tomar banho, apenas usando crack. “É uma droga que não te dá fome, por isso a pessoa emagrece bastante”, conta.
De acordo com ele, no início todo o salário era gasto com a droga. Quando perdeu o emprego, passou a roubar bens da casa da mãe para trocar por drogas. “Nos últimos tempos eu estava morando sozinho porque minha família se afastou e foi quando eu piorei”. Ele já está sem consumir a droga há três meses e faz planos de voltar ao trabalho. No entanto, revela que os primeiros dias foram de extrema dificuldade para encarar as crises de abstinência. Francisco* encontrava pedras por R$ 5,00 e R$ 10,00, dependendo do tamanho e fumava em latas de alumínio, torneiras, canos e cachimbos.
Vilmar*, 21, começou usar crack há três anos e gastou com a droga todo o patrimônio que obtivera com trabalho. “Eu gastava o meu salário, o da minha mãe, da minha namorada e da minha irmã. Não havia dinheiro que fosse suficiente, qualquer quantia que eu tinha no bolso corria na boca pra compra pedra”.
No último ano, ele diz que o desejo pela droga se intensificou e começou a buscar desesperadamente sem noção dos limites. “Sempre que eu saía e tomava uma cerveja dava vontade de fumar”, conta. Ele lembra que virava as noites em claro e não cumpria mais horários no trabalho. “Quando perdi o emprego comecei a pegar tudo que podia escondido pra trocar por pedra, até roupas e calçados meus e de meus familiares. Minha irmã tinha bastante roupa de marca então eu ia ao guarda roupa dela e pegava algumas peças escondido. Os traficantes aceitam de tudo desde panelas, eletrodomésticos, roupas, fogão, bujão de gás. Eu cheguei a deixar uma moto empenhorada por pedra”.
Vilmar* ficou internado em uma clínica psiquiátrica em Curitiba cuja diária era R$ 350,00. Depois de um mês internado, saiu e após quatro meses voltou a usar crack. Agora está internado em uma fazenda terapêutica. Largou os estudos no Ensino Médio e em função do crack já perdeu carro, moto, namorada e estava se afastando cada vez mais dos familiares. “Quando a minha família percebeu que eu tava roubando dentro de casa, me trancavam e saíam. Ou então, me fechavam pelo lado de fora”, relata.
*Nomes fictícios
O resgate pela espiritualidade
Quando todas as portas parecem se fechar e as tentativas de sair da droga são frustradas, surge a busca pela espiritualidade. Nesse momento, é fundamental que o viciado tenha o apoio da família.
A comunidade terapêutica Batista Betel, de Francisco Beltrão, abriga cinco internos em recuperação pelo uso de crack. O tratamento é baseado em princípios espirituais bíblicos. Os internos preenchem o tempo com diversas atividades como trato de animais, manutenção da casa, cultivo de plantas, entre outros.
O coordenador da comunidade terapêutica, Jorge Cezar Abasto, diz que os internos permanecem por um período mínimo de sete meses. A fazenda terapêutica fica localizada na comunidade do KM 08, interior do município, e tem capacidade para 20 pessoas. A entidade é filiada a Federação das Comunidades Terapêuticas do Brasil e recebe pacientes de diversos estados brasileiros. Abasto informa que a maioria dos drogados chega ao local desempregado, com perda do vínculo familiar e social. Depois do tratamento, os usuários ainda participam de grupos de apoio com intuito de evitar recaídas.
Pais dizem que perderam o gosto pela vida
Pais que vêem os filhos envolvidos com crack dizem que são tomados por um único sentimento: o desgosto. Seu Osvaldo*, 58 anos, autônomo, conta que sofreu poucas e boas com o drama enfrentado pelo filho de 24 anos. “Não foram poucas as vezes que dávamos dinheiro para ele comprar crack, porque temíamos que começasse a roubar”. Ajudar a sustentar o vício do filho foi a única alternativa encontrada pela família naquele momento para não perdê-lo para o mundo das drogas. “Depois de permanecer 17 meses internado, ele saiu recuperado e já faz um ano que não usa droga. É outra pessoa. Eu e minha esposa, na época, perdemos a vontade de viver, porque não imaginávamos mais um futuro para nosso filho”.
A família de seu Osvaldo* é humilde e com muita dificuldade conseguia pagar R$ 300 mensais para o filho ficar internado. Hoje, depois de ver o filho recuperado, com trabalho fixo e novos planos, o pai comenta que toda a luta valeu a pena e acredita que somente com o apoio da família é possível superar o vício das drogas.
Dona Maria*, 54 anos, enfrenta uma situação mais dramática. Depressiva e com embolia pulmonar, decorrentes do nível elevado de stress, ela lamenta a situação do filho de 33 anos. “Só quem enfrenta um problema como esses para saber o tamanho do estrago que faz na família da gente”. Segundo disse, o filho começou a usar crack depois de uma decepção no casamento e nunca mais conseguiu deixar a droga. A filha de 9 anos de idade está sob cuidados de dona Maria*. “Ele tinha bom emprego, tinha carro, moto, móveis e perdeu tudo. Ficou 10 meses internado saiu bem, mas logo teve uma recaída. Chegamos a mandá-lo para Guarapuava num hospital psiquiátrico, mas a situação só piorou. Eu e meu esposo estamos completando 35 anos de casamento e temos a sensação de ter tudo e ao mesmo tempo não ter nada, por ver o nosso filho morrendo aos poucos”, desabafa.
*Nomes fictícios
Fonte: http://www.horapopular.com.br/noticias.php?id=848
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