Hoje vou contar para vocês um pouco da história das mulheres agricultoras do Sudoeste do Paraná, que é também a minha história. São quase 40 anos de uma organização que é, com certeza, um exemplo da nossa dedicação na luta pelos direitos coletivos. Mais do que isso, é como essas mulheres, do interior do Paraná, mudaram suas vidas a partir da organização.

E vou começar falando de como eu iniciei a minha história. Foi na juventude que passei atuar como liderança na igreja da minha comunidade, no Grupo de Jovens, onde conheci meu companheiro de vida, meu esposo Justino. Estávamos no início dos anos 1980 e o Brasil passava por um processo de transformação, anos antes do fim da ditadura militar.

Bem jovem em Francisco Beltrão, muitos sonhos e desafios.

Havia uma parte da Igreja envolvida na defesa dos diretos humanos e na luta dos trabalhadores e agricultores familiares.

Em 1985, logo depois de me casar com o Justino, fomos morar em Teresina no Piauí, para trabalhar com a Pastoral da Terra. Alguns não sabem, mas o casamento foi num dia e a viagem foi já na mesma semana.

Em 2025 completaremos 40 anos de casados.

Foi um período de muito aprendizado e que me fez perceber o quanto é importante a organização das pessoas.Nesse tempo que fiquei no Piauí, aprendi muito, que mais tarde me serviu para atuar no movimento sindical, que estava se estruturando pelo país.

Quando voltamos do Piauí, em 1986, comecei trabalhar no Sindicato dos Trabalhadores Rurais em Francisco Beltrão, e aí inicia minha participação de forma mais efetiva do movimento sindical.

Experiência de vida: trabalho com a Pastoral da Terra no Piauí

As organizações de mulheres agricultoras foram apoiadas pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que questionava as injustiças sociais e de gênero.

No fim dos anos 80, comecei a atuar como coordenadora da Comissão Sindical de Mulheres da região Sudoeste. Esse trabalho foi muito importante pois me aproximou das pautas das mulheres, principalmente das agricultoras. Eu visitava as comunidades nos municípios para poder ouvir e saber as demandas das agricultoras.

Não deixei de ser agricultora e nem de lutar por esse espaço e pelas mulheres rurais.

Esse trabalho com mulheres começou a ser feito, porque os direitos que estavam na Constituição Federal de 1988, ainda não estavam garantidos para nós mulheres. Nossa luta foi, primeiro, pelo direito de existir e ter voz.

Tem uma foto que quero mostrar, para exemplificar, onde achavam que era o lugar da mulher dentro do sindicato, na janela! Essa era a participação, apenas ouvindo. Uma foto da década de 1970, em uma reunião do sindicato em Santa Izabel do Oeste. Os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, nessa época, atuavam de forma assistencialista, oferecendo serviços médicos, odontológicos, bolsas de estudo, entre outros. Além disso, somente o homem chefe da família tinha permissão para se associar, enquanto a mulher só poderia se tornar sócia se fosse viúva.

No sindicato, à direita na foto: o lugar da mulher era na janela.

Isso começou a mudar na década de 1980, quando começamos defender que os Sindicatos precisavam ter uma postura mais combativa. Os Sindicatos começam a mudar a forma de organização, deixando o assistencialismo para terem uma postura mais combativa, de luta por diretos, onde as mulheres também pudessem ocupar esses espaços de tomada de decisões, não apenas nos sindicatos, mas em suas propriedades. A exemplo disso era o direito à saúde, onde a entidade deixava de oferecer esses atendimentos e passava a cobrar do poder público a oferta desses serviços.

O trabalho de organização era um trabalho árduo, a gente não tinha recursos. Pegávamos ônibus e íamos até as comunidades distantes. Às vezes, não tinha ônibus para voltar e dormíamos na casa de uma família de agricultores da comunidade. Para só depois, às 6h da manhã, podermos voltar para casa. Naquela época o transporte era muito difícil, mas a hospitalidade das famílias era um suporte valioso.

Era uma época que tínhamos que lutar pelo básico. As mulheres agricultoras queriam ter seus direitos previdenciários, de poder se aposentar, e deixarem de ser consideradas ajudantes dos maridos. Nessa época o agricultor recebia meio salário-mínimo, já a mulher, não recebia nada. Queríamos ter nosso CPF e não mais usar o do nosso companheiro no Bloco de Produtor Rural. Queríamos ter o direito à licença maternidade, auxílio-doença e aposentadoria.

Eram momentos de grande efervescência. As mulheres se uniram em diversas frentes. Eu, além do Sindicato, participei da Coordenação Regional de Mulheres do Sindicato durante a década de 1980/90. A Organização das Mulheres atuava em 15 municípios do Sudoeste, ligada ao Movimento Sindical.

Quase a mesma foto: nós nos anos 90 e em 2023 durante os 37 anos da Organização das Mulheres

A nossa trajetória de luta também foi permeada pelo período histórico da redemocratização do Brasil, marcado pelas lutas camponesas, que se associavam a outras lutas, como no caso das lutas feministas dos anos 1970, caracterizadas pela contestação à ordem política instituída no país com a Ditadura Militar, iniciada em 1964.

O trabalho com a Organização de Mulheres no Sudoeste não era só parte do meu dia a dia, era parte da minha vida. Tenho muitas histórias, mas uma delas foi bem marcante. Em 1990, com 6 meses de gravidez da Giovana, peguei o ônibus para ir à uma comunidade, desobedecendo ordem da médica, que me pediu para repousar, pois havia risco que ela nascesse prematura.

Teimosa, peguei o ônibus e fui até a comunidade. Cheguei lá passei mal, tive muitas dores. Essa foi a única vez que me arrependi de alguma coisa na vida, de não ter obedecido a médica. Respirei fundo, tendei me acalmar, me tranquilizar e passei a noite na casa de um casal de amigos. No dia seguinte, realizei a reunião, voltei para Francisco Beltrão e continuei fazendo o trabalho até o fim da gravidez.

Esse episódio também me desafiou a fazer algo muito importante, aprender a dirigir. E assim eu fiz! Logo depois compramos um fusca, o famoso fusca azul que carregava as mulheres para luta. Isso foi uma grande conquista para nós. Agora íamos de carro. Então eu pegava as mulheres e íamos para as comunidades. Colocávamos umas cinco mulheres no carro, às vezes cabia umas a mais.

Grande conquista: agora íamos de carro, não precisávamos mais depender de ônibus.

Quando eu saía com o fusca, era assim, passava em uma comunidade, pegava a companheira e íamos para a próxima comunidade, ate lotar o fusca. Fazíamos as reuniões e depois voltava, deixando cada uma em sua casa. Lembro de muitas vezes, alguns maridos falarem: “mulher que se preza não sai sozinha, vão fazer o que?”, “O que vocês querem fazer, isso aí não vai dar certo”, “Reunião é coisa de homem”.
Não foi nada fácil, mas nós tínhamos umas as outras. Isso importava!

Fusca lotado, de comunidade em comunidade.

Direitos básicos
Nossa luta foi pela conquista dos direitos previdenciários das mulheres agricultoras. Era o fim da década de 80, em plena discussão da Constituição, que seria publicada por Ulysses Guimarães em 1988.
As primeiras aparições públicas dos movimentos de mulheres agricultoras ocorreram a partir de marchas a Brasília, já na década de 1980, para pressionar a Assembleia Nacional Constituinte, acompanhadas de abaixo-assinados reivindicando o acesso a direitos.

Viagens a Curitiba e Brasília: nossos direitos precisavam sair do papel.

Antes da Constituição, a mulher mesmo tendo tripla jornada, era vista como uma ajudante do marido. Além disso não existia aposentadoria para a trabalhadora rural. Lutamos para que se implantasse a aposentadoria de 55 anos para a mulher e 60 anos para o homem. Nesse momento, homens e mulheres se uniram por este benefício. E conquistamos o salário mínimo para todos.

Essa mudança impactou as famílias, a mulher também começou a decidir qual seria a produção, quanto seria o investimento naquele mês. Começou um novo conceito de família, discutir junto a propriedade, os afazeres de casa.

Por meio da promulgação da Constituição de 1988, as mulheres conquistaram o reconhecimento. Antes, mesmo trabalhando no campo, eram nominadas como dona de casa ou “do lar”. E depois se tornaram trabalhadoras rurais com direitos trabalhistas.

A Constituição sancionou o direito à propriedade da terra, o seguro-desemprego, a aposentadoria por invalidez, a licença-maternidade remunerada e a idade para aposentadoria, estipulada em 55 anos, ou após 30 anos de serviço, na condição de seguradas especiais. Também conquistamos o direito à sindicalização e à titulação conjunta dos lotes na política de reforma agrária, o acesso ao crédito específico para a mulheres.

A conquista da igualdade formal, contudo, não significou que os direitos conquistados tenham sido imediatamente implantados e assegurados.Começou uma nova forma de relacionamento, a autoestima das mulheres aumentou.

A companheira Sirlei Zatta lembra bem disso: “Mesmo com os direitos assegurados pela Constituição de 88, eles não saíam do papel. Eles só foram regulamentados de fato, em 1994. Em 1994 as mulheres agricultoras tiveram pagos seus direitos previdenciários e o homem agricultor passou a receber um salário mínimo.”

A Zelide Possamai, outra companheira de luta, lembra que foi preciso fazer valer os direitos conquistados na Constituição. “Em 1988, foi a época que entrou para a Constituição o direito ao salário-maternidade, à previdência… Aí a gente diz: Bom, mas tá ali na Constituição, mas e quando que vai valer isso? Temos que ir para luta.”

Foram feitas mudanças básicas, como ajuste do bloco do produtor rural, que era apenas no nome do homem. E pedíamos que também fosse incluído no nome da mulher, porque ela também representava a família. Em Francisco Beltrão, tivemos que ir lá, fazer uma manifestação na frente da prefeitura para que fosse incluído o nome da mulher no bloco de produtor rural.

Nesse sentido, mesmo após a conquista de diversos direitos, “as leis ficavam somente no papel” e as mulheres agricultoras precisaram se mobilizar para concretizá-las.
Tais conquistas foram dando mais espaço para que a organização das mulheres pudesse avançar. Após 1988, as mobilizações estavam mais orientadas para a conjuntura local e regional, na cobrança da execução de seus direitos na prática.

A companheira Maria Helena Libarde lembra que as mulheres só tinham certidão de nascimento ou de casamento, ou eram dos pais ou eram dos maridos. “A nossa luta. A nossa meta era cada vez mais fazer com que as mulheres participassem das organizações, participar, com o mesmo peso, não só com a enxada, da roça”.

A Circe Padilha conta: “Até a gente começa a se organizar, ir para Brasília, Curitiba, os direitos não saíam do papel. Nos reuníamos no sindicato, levávamos comida para continuar trabalhando sem parar. Queríamos os nossos direitos, a possibilidade de a mulher ganhar seu dinheiro e ter seus benefícios. Hoje, me enche de orgulho quando vejo uma mulher, que nem participou dos movimentos, chegando no mercado, fazendo sua compra com seu dinheiro.”

Maria da Silva, criadora do Hino da Mulher, que já foi tocado em muitas reuniões e manifestações de mulheres, lembra: “Nunca me esqueço da forma como a mulher era tratada. Uma vez, na plenária na Associação dos Agricultores, uma mulher levantou a mão e deu uma sugestão. Ninguém deu importância. Logo depois um homem levantou a mão e deu a mesma sugestão. E a proposta foi acatada. Alí eu vi o que é o desprezo pela voz de uma mulher.”

Hospital, uma nova batalha!
No ano de 1996 foi um marco para a Organização de Mulheres Agricultoras do Sudoeste. Estávamos completando uma década de organização, e realizamos um evento para comemorar o 8 de Março, que reuniu mais de 10 mil mulheres de toda a região no Parque de Exposições de Francisco Beltrão.
E nesse dia a organização de mulheres entrega nas mãos da então governadora em exercício, Emília Belinati; ao Secretário de Estado de Saúde Armando Raggio, e para a Senadora, na época, Marina Silva, um abaixo-assinado com milhares de assinaturas pedindo a construção de um Hospital Regional no Sudoeste do Paraná.

Em 1996, quando entregamos à vice-governadora Emília Belinati abaixo-assinado pelo Hospital Regional.

O ato foi consagrado como o primeiro marco oficial pela luta do Hospital, que só iniciou as construções no ano de 2006 e foi inaugurado em 2010.
“Antes do Hospital Regional a gente tinha um hospital com o SUS (Sistema Único de Saúde), a Policlínica. Mas a Policlínica passou a ser particular e acabamos ficando só com o Hospital São Francisco. Então a saúde era bem precária, porque o Hospital São Francisco não vencia atender a região toda e foi aí que começou a luta pelo Hospital Regional”, conta Zelide, que na época era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

“Aí foi passando o tempo e a gente pensou, com a Comissão Regional de Mulheres, em fazer uma luta para o Hospital Regional. Por isso dizemos que foi um movimento de mulheres que conseguiu o Hospital Regional.”

Com a senadora Marina Silva, em Beltrão: discurso sobre a construção do Hospital Regional.

Quando assumi a cadeira como suplente na Assembleia em 1999, apresentei Projeto de Lei 653/1999, que deu origem à Lei 13.199/2001. O projeto autorizava o início das obras do Hospital, em 2001.Oficialmente as portas foram abertas às 11h do dia 26 de fevereiro de 2010.

A minha entrada na vida pública foi estimulada pelo movimento das mulheres do Sudoeste. Como eu organizava as mulheres e falava da importância da participação da mulher, seja no campo econômico, político e social, elas comentavam muito que era um momento de participar e que elas gostariam muito que eu participasse, que eu disputasse as eleições.

Eu falo sempre que aquele momento foi um mês quase que eu não dormia, porque eu gostava da política, eu gostava de fazer campanha, mas para os outros! Eu tinha muito medo, fiquei assustada com aquilo e eu falava: “não, eu não vou”, e ao mesmo tempo eu sentia as mulheres falando: “poxa, você fala para gente ir, agora a gente está pedindo para você ir e você não quer ir.”

Missão de vida
A identidade política, enquanto agricultora, é central para a mobilização feita por essas mulheres. Mesmo distante da vivência na agricultura desde que me tornei deputada estadual, não deixei de ser agricultora e nem de lutar por esse espaço e pelas mulheres rurais, mesmo com meu foco de atuação e representatividade política tendo sido ampliado.

Primeira eleição: homenagem das(os) companheiras(os) de luta!

Encontro comemorou os 37 anos da organização das mulheres no Sudoeste

Depois de 2001, quando eu assumi enquanto deputada, ficamos um pouco distantes da produção, mas a luta, o trabalho, as organizações continuaram.
Claro que, como deputada, ampliei bastante o círculo de atuação e as lutas se tornaram maiores. Mas os Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, as Associações, o MST, o MAB, sempre estiveram na minha base política.


Mas foram todas as companheiras da Organização de Mulheres do Sudoeste do Paraná, que me deram a coragem e a responsabilidade de fazer, na política, nossos sonhos virarem realidade!