Texto divulgado no Informativo do CEPAT *- Conjuntura da Semana de 27/06 a 03/07.
PARA REFLETIR
Os jovens que espancaram, no dia 24 de junho, Sirlei Dias de Carvalho Pinto, enquanto ela esperava seu ônibus para voltar para casa depois do trabalho, tomaram manchetes e espaços nos meios de comunicação de todo o Brasil. A cena pode – e foi – analisada sob muitos pontos de vista. Uma violência a mais perpetrada contra uma “qualquer”, fruto de uma travessura de “jovens” de classe média que dizem ter confundido Sirlei com uma prostituta. Outra vez foi um índio! Então pode. As análises do antropólogo José Guilherme Cantor Magnani e da psicanalista Maria Rita Kehl ajudam a compreender os substratos mais profundos em que se insere mais este ato de violência. Elas desnudam a essência mesma da nossa sociedade, que perdeu a noção de espaço público e de autoridade e, por conseguinte, de respeito ao diferente. Refletem uma sociedade que sucumbiu às normas emanadas do consumo desenfreado, cuja lei é não ter leis e em relação à qual esses jovens se revelam sumamente obedientes. Para José Guilherme Cantor Magnani, a atitude desses rapazes reflete uma “apropriação privada do espaço público. Esses rapazes impõem pela força seus valores. São os donos da rua. Não querem compartilhar o espaço, que é público, com prostitutas ou mendigos. Demonstram um perfil complicado, de quem não admite o diferente.” A dificuldade de lidar com o diferente, com o outro está na raiz da questão. “Só que o freqüentador do oásis de segurança perde de vista que a rua é pública, já tão acostumado que está a interagir com os iguais. A geração shopping center circula de espaço protegido em espaço protegido de tal forma que não sabe como se comportar no espaço público. Não tem nem postura corporal para isso. É uma geração sem cultura urbana”, diz. Esta perspectiva individualista é tão forte “que nega ao outro o direito à cidade. Estes rapazes se valem de uma lógica particular, individualizada, que tem a ver com o meio em que foram criados. Só que a casa é um espaço privado, protegido por lei, enquanto a rua é de todos”, destaca Guilherme. Na sua análise, José Guilherme sublinha o tempo livre, uma realidade que vai se impondo cada vez mais e que deve ser encarado como “espaço para o desenvolvimento de novas sociabilidades”. Para ele, o tempo livre de hoje não é mais simplesmente uma antítese do trabalho. “O tempo livre tende a continuar aumentando na sociedade contemporânea, deslocado que está da noção de trabalho. Até um tempo atrás, ele era a antítese de trabalho. Não é mais. Tornou-se um fim em si mesmo. Daí tanta gente cultivando a forma física, buscando suportes para a alma, viajando e estabelecendo novos vínculos. Não vivemos mais aquele tempo ditado por uma regra básica da produção industrial, segundo a qual o indivíduo tem direito ao descanso justamente para repor energias físicas e psíquicas, antes de voltar a ser consumido como força de trabalho. Hoje, com a terceirização, a possibilidade de trabalhar à distância e as ocupações temporárias, o tempo livre aumenta.” Para a psicanalista Maria Rita Kehl, há um abismo que separa jovens pobres e jovens ricos: “O que distingue uns dos outros é o número do CEP”, diz. A solução seria “redesenhar o mapa do respeito e da civilidade de modo a não deixar ninguém de fora”. Ou seja, aterrar o abismo que separa a sociedade entre incluídos e excluídos de direitos, de dignidade, de oportunidades. Caso contrário, “quanto mais o Brasil maltrata seus pobres, quanto mais a polícia sai impune dos excessos cometidos contra os anônimos cujas famílias não protestam por temor de represálias, quanto mais o país confia na lógica do nós cá, eles lá, mais o gozo da violência se dissemina entre todas as classes sociais”. Kehl concorda com José Guilherme no aspecto da vida pública. Não há mais o cultivo de valores relacionados à vida pública. “Não terá o dr. Ludovico [pai de um dos jovens] educado seu filho para levar vantagem em tudo?”, pergunta Kehl. E afirma sem meias palavras: “Olham o mundo pela ótica dos direitos do consumidor: se eu pago, eu compro. Entendem seus direitos (mas nunca seus deveres) pela lógica da vida privada, como fizeram as elites portuguesas desde a colonização.” Se por um lado, a autoridade dos pais e da escola está em crise, uma outra anda de braçadas. Está relacionada ao mote de um anúncio de tênis que diz “No limits”, isto é, não há limites para você. “No fundo, são rapazes muito obedientes. Se a ordem é passar dos limites, pode contar com eles”, arremata Maria Rita Kehl. E isso tudo porque “a palavra de ordem que organiza nossa sociedade dita de consumo é: você pode. Você merece”. Todos esses são elementos culturais que precisam ser levados em consideração ao se tratar de discutir um projeto de Brasil. Como fazer dialogar dois brasis que não se conhecem, que se odeiam, que se excluem? Como pensar um Brasil assentado em direitos e não em privilégios (lembramos aqui de Milton Santos que dizia que a classe média brasileira sempre defendeu privilégios), que são sempre, por natureza, excludentes? _______________________ (*) Semanalmente, o CEPAT contribui com um clipping de notícias, releitura e avaliações das informações da mídia no espaço do Instituto Humanitas Unisinos – IHU (www.unisinos.br/ihu). Maiores informações: cepat@brturbo.com.br ou pelo telefone: (41) 3349-5343.